Generic selectors
Exact matches only
Search in title
Search in content
Post Type Selectors
post

O multiverso existe? As teorias que propõem múltiplos universos e o impacto dessa ideia na cosmologia

Durante séculos, acreditamos que o Universo conhecido era tudo o que existia — uma imensidão vasta, porém única. No entanto, teorias modernas da física, especialmente no campo da cosmologia e da mecânica quântica, têm ampliado esse horizonte de forma surpreendente. O conceito de multiverso sugere que o nosso cosmos pode ser apenas um entre incontáveis outros, cada qual com suas próprias leis físicas, constantes fundamentais e realidades possíveis. Mais do que uma especulação filosófica, essa ideia surge como consequência de modelos teóricos robustos, como a inflação cósmica e a interpretação de muitos mundos da mecânica quântica, desafiando profundamente nossa compreensão da realidade e da própria natureza da existência.

O que é o multiverso?
O conceito de multiverso se refere à possibilidade de que o nosso universo — com suas leis físicas, constantes fundamentais e estrutura cósmica — não seja o único existente. Em vez disso, ele faria parte de um conjunto muito maior de universos, com propriedades diferentes, coexistindo ou emergindo de uma realidade mais profunda e ainda não compreendida. Essa ideia, embora pareça saída da ficção científica, é considerada seriamente por muitos físicos e cosmólogos, uma vez que ela surge como consequência natural de certas teorias bem estabelecidas, como a inflação cósmica, a mecânica quântica e a teoria das cordas.
É importante frisar que o multiverso não é uma teoria única, mas um guarda-chuva que abrange diversos modelos distintos, cada um com uma origem e implicações diferentes. Alguns tratam o multiverso como uma consequência matemática inevitável, enquanto outros o veem como uma extrapolação ousada e, até o momento, impossível de testar.

As raízes científicas do conceito
A ideia de múltiplos mundos não é nova, e remonta à filosofia grega, mas sua base moderna começa a se formar a partir de interpretações da física do século XX. Um dos primeiros modelos científicos a propor universos múltiplos foi a interpretação de muitos mundos da mecânica quântica, proposta por Hugh Everett III em 1957. Nessa visão, toda vez que uma partícula quântica é observada e sua função de onda “colapsa”, todas as possibilidades continuam a existir — mas em realidades separadas. Essa interpretação, discutida detalhadamente pela Stanford Encyclopedia of Philosophy, elimina a aleatoriedade quântica ao afirmar que tudo que pode acontecer de fato acontece, mas em outros ramos do universo.
Outra origem poderosa da ideia de multiverso vem da cosmologia inflacionária. O modelo inflacionário foi proposto por Alan Guth na década de 1980 para explicar a homogeneidade e isotropia do universo. Mas Andrei Linde, físico teórico da Universidade Stanford, levou o conceito adiante com a proposta de inflação eterna, segundo a qual o processo inflacionário não cessa em toda parte ao mesmo tempo. Algumas regiões do espaço param de inflar e formam “bolhas” — cada uma delas, um universo com propriedades físicas distintas. Esse cenário é conhecido como multiverso inflacionário, e é um desdobramento natural da própria matemática da inflação, conforme apresentado por Linde em seu artigo técnico de 2007.
Já a teoria das cordas, que busca unificar a gravidade com as outras forças fundamentais, adiciona ainda mais complexidade à ideia. Essa teoria propõe que existem múltiplas dimensões espaciais além das três que experimentamos. Com base nisso, surge o conceito de paisagem das cordas, um número quase infinito de soluções possíveis para as equações da teoria das cordas, cada uma correspondendo a um universo com diferentes leis físicas. Brian Greene, em seu livro The Hidden Reality, descreve essa proposta como um dos cenários mais matematicamente robustos que dão origem ao multiverso.


Os quatro níveis do multiverso segundo Max Tegmark
O físico e cosmólogo sueco Max Tegmark propôs uma classificação elegante e provocadora dos possíveis tipos de multiverso, organizando-os em quatro níveis distintos. Cada nível representa um grau mais profundo de separação da nossa realidade observável, com fundamentos teóricos distintos e implicações crescentes para a física, a cosmologia e até mesmo a filosofia da ciência. Essa taxonomia é amplamente referenciada no debate científico sobre universos paralelos e nos ajuda a entender como diferentes áreas da física sugerem versões próprias do multiverso.
•Nível I – Regiões além do nosso horizonte observável: O primeiro nível é, paradoxalmente, o mais conservador e menos especulativo. Ele surge diretamente da teoria do Big Bang e da observação da expansão do universo. Como a luz viaja a uma velocidade finita, só conseguimos observar uma porção limitada do cosmos — o chamado “universo observável”. No entanto, se o universo for realmente infinito ou pelo menos extremamente grande, então existem regiões além do nosso alcance que seguem as mesmas leis físicas, mas com distribuições diferentes de matéria. Nessas regiões, devido ao número limitado de possíveis configurações de partículas (por causa da mecânica quântica), é matematicamente inevitável que existam cópias exatas de nós e de tudo o que conhecemos, inclusive versões com pequenas ou grandes variações. O multiverso de Nível I, portanto, não exige novas leis da física — apenas a suposição de que o espaço se estende indefinidamente.
•Nível II – Universos com diferentes constantes físicas: O segundo nível aprofunda o conceito ao incorporar a ideia de inflação cósmica eterna, um modelo da cosmologia que propõe que o universo passou por uma rápida expansão logo após o Big Bang, e que essa expansão ocorre continuamente em algumas regiões. Esse processo gera bolhas inflacionárias, cada uma se expandindo e formando um “universo-bolha” próprio. Em cada um desses universos, as constantes fundamentais da natureza — como a carga do elétron ou a constante cosmológica — podem assumir valores diferentes. Isso ocorre porque os mecanismos de quebra de simetria ou de compactificação das dimensões adicionais (previstas por teorias como a das cordas) podem se comportar de modo distinto em cada bolha. O multiverso de Nível II, portanto, explica não só a existência de múltiplos universos, mas também por que o nosso possui condições aparentemente “ajustadas” para a vida, abrindo espaço para interpretações antrópicas.
•Nível III – Muitos mundos da mecânica quântica: O terceiro nível propõe uma multiplicidade ainda mais radical, baseada não na cosmologia, mas na mecânica quântica. De acordo com a interpretação de muitos mundos, proposta inicialmente por Hugh Everett, cada vez que ocorre uma medição quântica, o universo se ramifica em várias versões, cada uma correspondente a um dos possíveis resultados da medição. Assim, em vez de colapsar uma função de onda para um único resultado, o universo simplesmente “divide-se” em diferentes ramificações, cada uma real em seu próprio direito. Nesse cenário, todos os desfechos possíveis de cada evento quântico ocorrem efetivamente, criando uma árvore infinita de universos divergentes. O multiverso de Nível III não é essencialmente distinto do Nível I ou II em termos de “conteúdo” — ou seja, não cria universos com novas leis —, mas adiciona uma dimensão de duplicação dinâmica contínua à realidade, diretamente implicada pela própria estrutura matemática da teoria quântica.
•Nível IV – O multiverso matemático: O quarto e mais ousado nível da classificação de Tegmark parte de uma visão extrema do realismo matemático: a ideia de que qualquer estrutura matemática consistente possui existência física. Segundo essa hipótese, o nosso universo não é apenas descrito pela matemática — ele é uma estrutura matemática. Se isso for verdade, então todos os outros sistemas matemáticos logicamente consistentes também existem em algum sentido, cada um como um universo real. Esses universos podem ter leis físicas radicalmente diferentes — ou mesmo lógicas distintas — das que conhecemos. O multiverso de Nível IV é, portanto, o mais abrangente de todos, contendo todos os outros níveis dentro de si. Ele escapa completamente dos limites da observação empírica e toca em questões filosóficas profundas sobre a natureza do ser e a relação entre matemática e realidade.
Essa hierarquia proposta por Tegmark serve como uma ponte entre o que podemos observar, o que podemos teorizar e o que talvez nunca possamos comprovar diretamente. Embora os níveis mais altos do multiverso estejam mais distantes da verificação empírica, cada um deles surge como consequência natural de teorias já consolidadas — da inflação cósmica à mecânica quântica e à lógica matemática. A ideia de múltiplos universos, antes relegada à ficção científica, tornou-se hoje uma arena legítima e desafiadora para o pensamento físico e cosmológico contemporâneo.

Há alguma evidência para o multiverso?
Um dos maiores obstáculos ao multiverso é a falta de evidência empírica direta. Por definição, outros universos estariam desconectados causalmente do nosso, o que os tornaria inacessíveis às observações tradicionais. No entanto, alguns cientistas tentam encontrar evidências indiretas.
Por exemplo, certos modelos de inflação eterna preveem que colisões entre “bolhas” de universos poderiam deixar marcas na radiação cósmica de fundo — a luz remanescente do Big Bang. Grupos como o da ESA (Agência Espacial Europeia) e NASA investigam essas assinaturas usando dados de satélites como o Planck. Até agora, nenhum sinal inequívoco foi encontrado, mas os cientistas continuam a buscar padrões anômalos, como pontos frios na radiação que não se ajustam ao modelo padrão.
Outra abordagem é o princípio antrópico, segundo o qual nosso universo tem leis físicas “afinadas” para permitir a existência da vida. Em um multiverso com universos variando aleatoriamente em suas constantes fundamentais, é esperado que apenas alguns poucos tenham condições favoráveis à vida — e naturalmente é nesses que observadores como nós surgiriam. Essa explicação é aceita por alguns como uma forma válida de justificar por que o universo é como é, enquanto outros a rejeitam por ser considerada circular ou não científica.

O multiverso e os limites da ciência
O debate sobre o multiverso ultrapassa os limites da física observacional e entra no campo da filosofia da ciência. Cientistas como Sean Carroll defendem que, mesmo que os outros universos não sejam diretamente observáveis, a hipótese do multiverso pode ser avaliada como parte de teorias maiores que fazem previsões testáveis dentro do nosso universo. Assim, se a teoria da inflação ou das cordas for validada por outros meios, o multiverso poderia ser considerado uma consequência inevitável dessas estruturas.
Por outro lado, críticos argumentam que a falta de testabilidade torna o multiverso uma hipótese não científica. George Ellis, cosmólogo sul-africano, afirmou em artigos publicados na Nature que o entusiasmo em torno do multiverso pode comprometer os critérios tradicionais de ciência, como a refutabilidade de uma hipótese.
Apesar da controvérsia, é notável que as ideias do multiverso sejam levadas a sério por figuras importantes da física teórica, e estejam presentes em trabalhos técnicos, conferências acadêmicas e centros de pesquisa como o Fermilab, que dedica parte de seus esforços à conexão entre física de partículas e cosmologia profunda.

Uma janela para algo maior?
Seja uma realidade física ou apenas uma abstração matemática, a hipótese do multiverso expande os limites do nosso entendimento sobre o cosmos. Ela desafia o senso comum, questiona o lugar da humanidade no universo e amplia o escopo da própria ciência. Pode ser que nunca possamos confirmar sua existência de forma definitiva, mas o simples fato de que modelos matemáticos consistentes e teorias consolidadas apontam para essa possibilidade já é, por si só, uma revolução conceitual.
Como disse Brian Greene, “a ideia de que o nosso universo possa ser apenas um entre muitos obriga a ciência a repensar suas ambições, métodos e até seus fundamentos epistemológicos.” Nesse sentido, o multiverso não é apenas uma hipótese exótica — é um convite a olhar para o universo com novos olhos, mesmo que ele seja apenas uma parte de algo ainda maior.

Gabriel Rodrigues

Entusiasta de Astronomia e Astrofísica, criador e escritor do blog

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Posts Relacionados