Um dos enigmas mais persistentes da cosmologia moderna acaba de ganhar uma solução convincente. Um estudo publicado nesta segunda-feira (16) na Nature Astronomy revelou onde está a chamada “matéria bariônica perdida” do universo — a matéria comum composta por prótons, nêutrons e elétrons, que forma estrelas, planetas e tudo o que conhecemos. Desde os anos 1990, medições precisas da radiação cósmica de fundo, os ecos do Big Bang, previam que deveria haver cerca de duas vezes mais matéria ordinária no cosmos do que aquela que os astrônomos conseguiam detectar diretamente. Essa discrepância ficou conhecida como o “problema da matéria perdida”, e levantou questões sobre o grau de entendimento humano acerca da estrutura e evolução do universo.
Para solucionar a questão, uma equipe internacional de pesquisadores liderada pelo astrofísico Liam Connor, da Universidade de Toronto, utilizou um fenômeno relativamente recente no arsenal da astronomia: os fast radio bursts (FRBs), ou explosões rápidas de rádio. Essas emissões extremamente breves e intensas de energia, que duram apenas milissegundos, ocorrem em galáxias distantes e percorrem bilhões de anos-luz até alcançar a Terra. Conforme viajam pelo espaço intergaláctico, suas ondas de rádio interagem com as partículas existentes pelo caminho, sofrendo um fenômeno conhecido como dispersão, que atrasa as frequências mais baixas em relação às mais altas. Ao medir a quantidade de dispersão sofrida por cada FRB, os cientistas podem inferir a densidade de matéria existente entre a fonte e a Terra, mesmo que essa matéria seja invisível por métodos tradicionais.
Neste estudo, foram analisados 69 FRBs, registrados a distâncias que chegaram a mais de 9 bilhões de anos-luz, o equivalente a dois terços da idade do universo. Os resultados mostraram que cerca de 76% da matéria bariônica está distribuída em uma teia difusa de plasma quente e rarefeito que permeia o espaço intergaláctico. Outros 15% estão concentrados em halos de galáxias — grandes regiões ao redor das galáxias povoadas por gás e partículas quentes — e apenas 9% da matéria comum permanece confinada dentro das galáxias propriamente ditas, como estrelas, planetas e poeira interestelar.
“A pergunta com a qual lidávamos há décadas era: onde está o restante dessa matéria? A resposta parece ser: no espaço entre as galáxias, espalhada como uma névoa de partículas carregadas e quente demais para ser vista”, explicou Liam Connor, autor principal do artigo. Segundo ele, os FRBs funcionam como lanternas cósmicas naturais, iluminando os vastos vazios entre as galáxias e permitindo pesar a matéria invisível a partir da forma como a luz desacelera e se dispersa no meio intergaláctico.
Essa névoa cósmica que compõe a maior parte da matéria comum do universo é formada principalmente por hidrogênio ionizado e está intimamente associada a fenômenos extremos, como explosões de supernovas e atividade de buracos negros supermassivos em centros de galáxias. Esses eventos violentos expelem grandes quantidades de gás quente para fora das galáxias, que ao longo de bilhões de anos se acumulam nesse meio intergaláctico, tornando-se praticamente indetectáveis pelos métodos ópticos e de raios X usados anteriormente.
O coautor Vikram Ravi, do Instituto de Tecnologia da Califórnia (Caltech), destacou a importância da descoberta para os modelos cosmológicos. “É como se víssemos a sombra de todos os prótons e nêutrons do universo usando os FRBs como fundo de iluminação”, afirmou. Ele acrescentou que isso ajuda a confirmar com mais precisão os modelos do universo em larga escala, além de mostrar que as previsões teóricas sobre a quantidade total de matéria comum estavam corretas, mas que as técnicas de observação até então não eram capazes de detectar a maior parte dela.
A localização da matéria bariônica perdida não resolve questões relacionadas à matéria escura, que permanece como uma das maiores incógnitas da física moderna. No entanto, fornece uma peça essencial para o entendimento da composição do universo, que se acredita ser formado por cerca de 5% de matéria bariônica, 27% de matéria escura e 68% de energia escura. A diferença agora é que os astrônomos finalmente sabem onde está concentrada toda a matéria comum prevista pelos cálculos.
O estudo também reforça o potencial dos FRBs como ferramenta cosmológica de alta precisão. Antes vistos apenas como fenômenos astronômicos intrigantes desde sua primeira detecção em 2007, esses pulsos de rádio vêm se tornando aliados importantes na medição de estruturas cósmicas, incluindo estudos sobre a expansão acelerada do universo e a distribuição de matéria ao longo das eras.
As perspectivas para os próximos anos são otimistas. Com a chegada de novos radiotelescópios, como o DSA-2000 e o Square Kilometre Array (SKA), será possível detectar milhares de FRBs por ano, permitindo mapear com ainda mais detalhes a distribuição de matéria no cosmos e avançar no estudo das propriedades físicas desse plasma intergaláctico, sua temperatura, densidade e evolução ao longo do tempo.
A astrofísica cosmológica Joana Hakala, da Universidade de Helsinque e que não participou do estudo, comentou à Nature Astronomy que a descoberta é um divisor de águas. “Sabíamos que essa matéria precisava estar em algum lugar, mas era como procurar fumaça no escuro. Os FRBs se mostraram a lanterna perfeita para enxergar a névoa que atravessa o universo.”
Assim, a busca pela matéria bariônica perdida se encerra com um desfecho elegante, reafirmando a capacidade da ciência de resolver enigmas persistentes com criatividade e tecnologia, mesmo quando as evidências se escondem nos recantos mais difusos do universo.